Numa terra muito distante, no
Oriente, vivia um jovem de grandes ideais e muitos sonhos que trabalhava desde
o amanhecer, cultivando a terra. Almejava sem descanso que seu destino mudasse;
desejava ter a coragem e a sorte daqueles incansáveis viajantes que percorriam
terras longínquas pelos confins do universo, apreciando no- vos pratos e aromas
e admirando cores e perfumes jamais imaginados.
O
nome desse rapaz era Sargu, conhecido
como “o obstinado” devido a sua incansável disposição de mudar seu destino.
Era filho de camponeses e tinha apenas 16 anos. Apesar dos grandes esforços dos
pais para que se dedicas- se à terra, como eles, Sargu, sempre que podia, escapava de seus trabalhos no campo e
subia ao alto de um morro, onde deixava a imaginação voar; olhava o horizonte
tentando ver tudo que lhe era proibido.
Todos
os dias eram iguais para Sargu; terminava
sua jornada e se punha a sonhar, esperando algum acontecimento que mudasse sua
vida, ansiando por deixar de arar a terra e ir em busca das aventuras que, mais
de uma vez, ouviu dos mercadores que chegavam a seu povoado.
Em
um dourado entardecer, Sargu, absorto
em seus sonhos, avistou ao longe as figuras de vários homens e animais. À
medida que o grupo se aproximava, as imagens se tornavam mais claras e eram tantos
camelos e asnos, que não poderia dizer quantos. Viu muitos e logo começou a
fazer linhas e outros sinais na areia para registrar em algum lugar o que via.
Fez tantas marcas que não podia acreditar; sem dúvida o senhor que vinha em um
dos camelos, no início da caravana, era um homem rico.
Eram
por volta de cem camelos e asnos carregados com todo tipo de especiarias,
tecidos e vasilhas, propriedade de um rico mercador apelidado de Mestre, cujo verdadeiro nome era Fargot. Era um homem de aproximadamente 50
anos, de poucas palavras e poucos amigos, de voz áspera e olhar penetrante. Sua
pele estava endurecida pelo sol e pela areia e, apesar de sua riqueza, era um homem
de modos e gostos simples.
Viajava
acompanhado da família, constituída por três esposas, vários filhos e sua
mais preciosa joia, sua filha Tesia, de
15 anos, além de muitos empregados que o serviam e viviam sob sua proteção.
A
caravana, que nunca tinha sido tão numerosa, passava ano após ano pelas terras
onde morava Sargu, estabelecendo-se
na margem do rio e oferecendo suas mercadorias aos habitantes das aldeias
próximas.
Quando
Sargu notou Tesia entre a multidão, ficou cativado pela beleza e encanto
daquela donzela de grandes olhos amendoados e soube que final- mente havia
chegado o momento pelo qual tanto esperara. Era hora de empreender o voo, de conhecer
terras desconhecidas, lugares nos quais só poucos haviam estado, mistérios que ninguém
havia imaginado; era hora de aceitar o convite que a cada tarde lhe fazia o horizonte.
Tesia precisava conhecê-lo, e
conquistá-la seria seu grande feito. Andou incansavelmente pela feira que havia
sido instalada no local, observando com grande interesse as mercadorias dos
comerciantes, e permaneceu horas tentando ver alguma transação. Todas elas eram
realizadas pelo Mestre.
Cada
vez que se fazia uma venda importante, chamavam-no e ele tirava uma bolsa de pano
que guardava sob as roupas e, pondo-se de joelhos, fazia com grande rapidez sulcos
na areia, nos quais colocava pequenas bolinhas de metal. Logo dizia as quantias
finais, ante a perplexidade de todos os que o observavam. Geralmente, os
compradores e seus ajudantes utilizavam cor- das com nós, sementes ou pequenos
pedaços de madeira para fazer as contas, mas ninguém superava a exatidão e
rapidez do Mestre.
Quando
Sargu notou o que Fargot fazia, ficou maravilhado: achou que ele era um mago ou um bruxo e se
propôs a aprender com o Mestre, mesmo
que isso implicasse ter que deixar os seus familiares para se unir à caravana.
No
dia em que se desfez a feira e o grupo se dispôs a partir, Sargu implorou ao Mestre que
o levasse, que lhe ensinasse sua magia, e prometeu trabalhar só por leito e
comida. Fargot, comovido com tamanha
insistência, relutou por um momento, dado o modo como o rapaz olhava para sua querida
filha; entretanto, algo nesse moço o fazia sentir como se olhasse para si
próprio, e assim, mais tarde, permitiu que ele se juntasse à caravana; porém
lhe disse: “Minha arte não é magia e tampouco sou mestre, como me chamam por
aqui, portanto não posso ensinar-lhe, só posso dizer que me observe e aprenda:
conte os dedos das mãos, uma, duas vezes
e vá sempre na direção do seu coração”.
E, assim,
Sargu se uniu ao grupo e foi rapidamente
aceito por todos, graças a sua tão particular maneira de pensar e seu espírito
solidário. Logo tratou de se aproximar de Tesia,
estabelecendo-se entre eles uma bela amizade, que não demorou a se transformar
em verdadeiro amor.
Sargu temia que o Mestre o expulsasse da caravana por sua
origem humilde e logo se propôs, com determinação, ser digno do amor de Tesia. Enquanto a caravana percorria
diversas regiões, transcorreu bastante tempo, e todas as noites em que demorava
para conciliar o sono Sargu, como se estivesse jogando, fazia
sulcos na areia, nos quais colocava pedrinhas arredondadas, imitando os gestos
de Fargot.
Uma
noite, cansado de não entender, relembrou uma conta feita pelo Mestre e conseguiu contar como ele: 123
camelos e 52 asnos, que eram a totalidade de animais que possuíam. Por fim
havia entendido: o que Fargot fazia
era decompor as cifras sobre os sulcos na areia mediante as bolinhas. Primeiro
contava, depois decompunha e finalmente somava. Mas como fazia isso?
Sargu percebeu que contar
até dez era muito importante, daí o Mestre
ter-lhe dito para contar os dedos de ambas as mãos. Em cada sulco havia, de
um modo especial, um 10 implícito. Então se lembrou das outras palavras do Mestre: “vá sempre na direção do seu
coração” e as repetiu uma e outras vezes, até que, em um segundo – zás –, descobriu: tratava-se de contar
da direita para a esquerda!
Desse
modo, Sargu conseguiu montar o seguinte
esquema na areia: tinha 123 risquinhos que representavam a quantidade de
camelos; ele os agrupou de 10 em 10, fazendo um círculo em cada grupo, formando
assim 12 grupos e sobraram 3 riscos sem agrupar. Então fez um círculo maior que
continha os 10 primeiros grupos e assim sobraram 2 grupos de 10 risquinhos,
mais os 3 riscos avulsos.
Os 3
riscos avulsos foram representados por 3 pedrinhas colocadas no primeiro sulco,
à direita do grupo de sulcos que havia previamente feito na areia. Os 2 grupos de
10 riscos foram representados por 2 pedrinhas, coloca- das no sulco seguinte, à
esquerda do anterior, e finalmente ele pôs 1 pedrinha à esquerda de todas as anteriores,
em representação do grupo maior, de 10 grupos de 10 riscos cada um. Desse modo
obteve o seguinte sobre os sulcos:
Fez
o mesmo para contar os asnos e obteve o seguinte:
Mestre normalmente
utilizava 3 grupos ou mais de sulcos, dependendo do tamanho da soma, e usava um
sulco independente para os resultados. Desse modo Sargu transportou todas as bolinhas para um terceiro conjunto de
sulcos e obteve:
Sargu estava simplesmente
eufórico. Havia descoberto o grande mistério do Mestre e poderia ser um sábio, como tanto almejara, e então ser
digno do amor de Tesia. Praticou
muitas vezes até que lhe pareceu um jogo. Começou a não precisar de tantos
sulcos e logo chegou a fazer as contas em um só grupo, no qual ele diferenciava
as quantidades usando pequenos pedaços de
madeira para separá-las.
Um dia
o Mestre caiu enfermo de um estranho mal,
suas pernas não respondiam, e a caravana precisou permanecer longos meses
parados no deserto, nas proximidades de um pequeno riacho. Reinou a fome e a desolação
e as vendas caíram consideravelmente devido ao isolamento do grupo. Por necessidade,
venderam muitos camelos e asnos a um preço bastante baixo.
A comida
e o gado ficaram cada vez mais escassos e as barras cunhadas de prata, poupadas
em épocas melhores, desapareceram por completo ao serem trocadas por mercadorias
de primeira necessidade nas aldeias vizinhas.
Foi então
que passou pelo acampamento um conhecido estelionatário, que chamavam de O Príncipe Negro, e seu bando de
agiotas, vindos da cidade de Nínive. Esse
homem e seu séquito souberam da desventura da caravana do Mestre e viram no desolado grupo a possibilidade de um grande negócio,
no qual ganhariam muito.
O Príncipe Negro ofereceu uma quantidade
tentadora de barras de prata pela compra de algumas especiarias e tecidos e da
maior parte dos camelos e asnos que sobraram, além de um grande dote para levar
consigo a belíssima Tesia.
O
débil Fargot não tinha forças para se
pôr em pé, nem mesmo para ajoelhar-se para comprovar as contas do que deveria
receber. Foi então que Sargu interferiu
habilmente, entregando ao Mestre, em
seu leito, uma tábua de argila na qual havia talhado vários sulcos verticais paralelos,
que imitavam perfeitamente os sulcos na areia. Sargu explicou ao Mestre,
com todos os detalhes, o tremendo logro a que se exporia se aceitasse o negócio
proposto pelo Príncipe Negro.
Fargot ficou
perplexo diante da exatidão das contas e da habilidade e perícia do rapaz para fazê-las,
de modo que muito satisfeito e agradecido não aceitou o negócio, e os
malfeitores fugiram sem deixar rastros.
O Mestre abençoou Sargu e lhe disse:
–
Agora sou eu quem lhe pede para ficar e
ensinar a mim e aos meus o que aprendeu. Tenho sido muito egoísta em querer que
ninguém mais saiba sobre a arte de contar na areia. Com o seu invento poderei
fazer as contas mesmo no meu leito. Você aperfeiçoou minha arte e é melhor que
eu. Peça o que quiser, você é um obstinado muito inteligente.
Sargu, emocionado, pensou
por alguns instantes e respondeu:
–
Quero ficar ao seu lado para sempre, ser seu sócio
e amigo. Além disso quero a mão de sua filha para que me abençoe com sua descendência
e, acima de tudo, quero ser um mestre e ensinar pelo mundo a arte de calcular.
Fargot atendeu
aos desejos do rapaz, mas bem no fundo de seu coração sentia que seu fim se
aproximava. Como sua enfermidade o consumia lentamente, deixou seu destino e o
dos seus nas mãos do rapaz, permitindo que se festejasse o casamento entre ele
e sua filha.
Graças
a Sargu puderam continuar sendo os
prósperos e ricos mercadores de sempre, só que agora levavam uma escola
errante, aberta a todos que quisessem aprender a contar no ábaco, nome que se deu
ao sistema utilizado por sulcos e bolinhas sobre a areia.
Sargu era o Grande Mestre, ensinava incansavelmente
e repetia:
Cada bolinha no primeiro sulco à direita
corresponde a uma unidade; cada bolinha no segundo sulco, indo para a esquerda,
significa 10 unidades; cada bolinha no terceiro sulco
corresponde a 10 unidades de 10, isto é, 100 unidades, e assim sucessivamente. Recordem: Para somar ou subtrair dois
números, diferenciamo-los separando-os por pedacinhos de madeira ou outro
material similar, mas nunca deve haver mais que 9 bolinhas em cada sulco.
Por
fim Fargot morreu e deixou todos os
seus bens para Sargu. Fargot cuidou para que nada faltasse às
suas mulheres e aos seus adorados filhos e descendentes. Suas últimas palavras expressaram
seu desejo de que a escola errante jamais se detivesse e que seus ensinamentos
atingissem os confins do Universo, sem
distinção de nenhum
tipo, nem social nem racial.
É
por isso que Sargu decidiu destinar o
resto de sua existência à difusão e ao aperfeiçoamento do ábaco, que foi evoluindo,
pouco a pouco, ao passar pelas diferentes culturas e civilizações do Oriente e do
Ocidente. Porém, em essência, o ábaco permanece o mesmo, e graças a ele se deu um
importante passo em Matemática, conhecido como a notação com valor posicional (o valor de uma bolinha depende do
lugar ou sulco que ocupa).
Sargu percorreu os lugares
mais incríveis com seu invento, visitou a China e a Índia, entre outros lugares
da Ásia, onde, dizem, se aperfeiçoou ainda mais na arte do ábaco. Desenhou-se um
ábaco com bolinhas sobre eixos fixos, que, além de ser mais cômodo, uma vez que
evitava o constante cair das bolinhas, facilitou as operações com quantidades maiores.
Temos
informação de sua existência no Oriente só a partir do século XIII d.C., de
onde, supõe-se, teria passado ao Japão com outras modificações.
O ábaco
que Sargu difundiu se firmou fortemente
na Mesopotâmia devido à complexidade
de sua escrita, repleta, particularmente na numeração, de símbolos incômodos e confusos.
Também
se difundiu na maioria das terras civilizadas. O ábaco utilizado na Roma antiga
era metálico, em geral de prata ou bronze, e era formado por dois conjuntos de sulcos
paralelos, um sobre o outro. No conjunto dos sulcos inferiores havia 4 bolinhas
em cada um, enquanto no conjunto dos superiores havia uma só bolinha. A bolinha
do sulco superior representava 5 vezes a bolinha correspondente no sulco inferior.
Assim o calculista podia representar qualquer número.
À direita
do ábaco de metal havia um conjunto separado de sulcos utiliza- dos para se
trabalhar com frações, o que faz sentido, já que os romanos dividiam sua moeda
em quartos.
A
palavra que os romanos usavam para denominar as bolinhas ou pedrinhas era calcules, do latim (quem não ouviu falar
de cálculos renais?), da qual vem nossa palavra calcular.
Muito
tempo depois, na época de Cólon, alguns
comerciantes e donos de negócios do oeste da Europa ainda utilizavam tabuleiros
de contas, que traziam algumas modificações em relação ao antigo funcionamento,
mas obedeciam aos mesmos princípios do ábaco da antiguidade.
Os ábacos
modernos, chineses, japoneses e russos, chamados respectivamente de Swa Pan, Soroban e Scoty, ainda
funcionam com grande facilidade e rapidez nos seus países, embora seu uso
esteja condenado a desaparecer, devido à utilização crescente das calculadoras.
Alejandra Soto Ferrari